Violência Gratuita (Rafael)

3 setembro, 2008 at 8:10 pm 8 comentários

Violência Gratuita (Funny Games), 2007, Áustria/Estados Unidos, Michael Haneke.

Entre o verde das árvores de um lado e o azul enegrecido das águas do lago do outro, uma lancha desliza pelas estradas da rodovia levada por um carro que, calmamente, percorre a pista. Dentro do automóvel, o casal Ann e George sorriem em companhia do filho Georgie, ao som de uma bela sinfonia.  De repente, a voz doce e os violinos da música dão lugar a gritos histéricos e doloridos, um baixo furioso e uma bateria de hardcore.  Os sorrisos e as feições sossegadas da família dentro do carro, no entanto, permanecem iguais: estão indo passar as férias na casa de campo.  As férias mais “divertidas” de suas vidas.

A versão de 2007 de Violência Gratuita é um remake da versão original do filme, produzida 10 anos antes, em 1997. As cenas são as mesmas, o diretor é o mesmo, as proporções dos cenários também. O que muda na nova versão é o elenco de atores e algumas assinaturas na equipe técnica. No filme de 97, por exemplo, quem interpretou George foi o excelente ator Ulrich Muhe, de A Vida Dos Outros.  O diretor austríaco Michael Haneke (Cachè, A Professora de Piano) dessa vez dirige Naomi Watts (Ann), Tim Roth (George), Michael Pitt (Paul), Brady Corbet (Peter) e outros.  A nova versão de Violência Gratuita possibilitou uma melhor distribuição e produção do filme, que, aliado também ao crescimento do cinema do Velho Mundo, aumentou a visibilidade da película no circuito internacional.

Paul e Peter – interpretados por Michael Pitt e Brady Corbet, respectivamente – são primos. A uma primeira análise, temos a visão de dois simpáticos, bem cuidados e belos garotos, tanto um como o outro trajando roupas plenamente brancas e comedidas. De tão educados que são, chegam a causar certa estranheza e perturbação – e, logo no início do filme, veremos que farão por merecer tais sensações. Os dois estão hospedados na casa vizinha e resolvem então fazer uma pequena visita aos recém chegados Ann, George e Georgie, usando como pretexto para isso a necessidade de alguns ovos emprestados. E a partir daí, sem que percebam, a família passa a participar dos divertidos, cruéis e sádicos jogos da dupla.

E é também a partir daí que o diretor austríaco Michael Haneke, mais uma vez, pega com agressividade nos cabelos de nós, espectadores, e nos obriga a ficar em frente ao espelho. E o reflexo vislumbrado não será muito diferente do dos dois jovens perturbados: somos sádicos, sedentos pelo sangue que jorra das telas dos filmes, jornais e quadrinhos. Voyeuristas da violência produzida pela mídia. Em uma das cenas, o pai George pergunta: “Por que não nos mata logo?”. Paul, com um sorriso no canto da boca, responde: “Você não deve esquecer a importância do entretenimento”. Violência Gratuita, portanto, não é propriamente uma crítica às mídias que têm seu conteúdo manchado de sangue, mas à humanidade, que se deleita com tudo isso.  Em outro grande momento do filme, Paul vira para a câmera e diz: “O que você acha? Acha que eles têm chance de ganhar? Está do lado deles, não é?”. Os dois jovens e o espectador, portanto, longe de serem diferentes, são cúmplices de tudo que está acontecendo.

A fotografia sóbria de Violência Gratuita condiz com a aparência dos cenários: pacato e calmo. A trilha sonora é composta por sinfonias e a música que inicia e encerra, do grupo norte-americano Naked City, um dos projetos do saxofonista John Zorn. Outro fator relevante em Violência Gratuita é a interpretação dos atores. No entanto, Naomi Watts (Cidade dos Sonhos) fazendo o papel de Ann e Michael Pitt (Os Sonhadores) interpretando Paul se destacam entre o elenco. As feições de Ann, que misturam dor, medo e pavor, provoca as mesmas sensações em quem a vê. Já Michael Pitt soube bem incorporar um dos personagens mais perturbados do cinema – talvez justamente pelo fato de Paul ser tão parecido com as pessoas que vivem ao nosso redor.

As digitais de Michael Haneke estão por todo o filme: câmeras fixas que permanecem assim durante minutos, mesmo que nenhuma ação esteja ocorrendo, a violência emocional e não física – ou seja, é o que foi imaginado pelo espectador que choca, e não o filme em si -, a manipulação. Haneke, a todo momento, tenta perturbar e cutucar quem está do outro lado da tela. Mais uma vez consegue, e mais uma vez, com maestria.

Shall we begin?

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Cidade Tranqüila (Filipe)

8 Comentários Add your own

  • 1. Filipe  |  5 setembro, 2008 às 5:21 pm

    tá aí um (dois na verdade) filme que eu quero assistir e sempre esqueço. os dois filmes que eu vi do haneke são bons (cache e sétimo continente)

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  • 2. italo  |  11 setembro, 2008 às 8:40 pm

    Nossa, achei um filmão e gostei desse texto que você fez também. 🙂
    Eu queria saber se vale a pena assistir o filme antigo também, mas pelo visto faz né? 🙂
    Abraço!

    Responder
    • 3. BANGJUNNY  |  22 julho, 2011 às 2:58 pm

      vale muito a pena, as atuaçoes sao perfeitas, essa regravaçao foi a melhor que ja vi por ser mais fiel ao original. um grande filme.

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  • 4. Dante  |  3 outubro, 2008 às 4:04 pm

    Putz!!!!! Esse realmente é genial. Muito me agradou a forma como somos forçados a ser cúmplices de tudo o que acontece na tela. Testemunhamos horas de torturas mesmo sem querer. Simplesmente Brilhate.
    Quanto a assistir ou não ao filme original, tanto faz. O filme é absolutamente o mesmo. Quadro a quadro o filme foi refeito com atores americanos. Só isso.
    Brilhante o filme 🙂

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  • 5. Carol  |  7 outubro, 2008 às 9:21 pm

    Finalmente um blog aracajuano de qualidade! Os textos daqui são bem legais; ainda não li todos, mas tenho certeza de que vale a pena.
    O Haneke é bem interessante mesmo com a sua violência emocional. Esse eu ainda não assisti, a história não me atraiu; mas agora fiquei curiosa pra ver, apesar de às vezes ter tido a impressão, pelo texto, de que houve uma pretensão de criar uma atmosfera diferente em relação ao gênero do filme. Não estou dizendo que ele não seja diferente dos do gênero sadismo, bla, bla bla. Enfim, só uma questão de impressões ^^
    Aposto que Naomi Watts se saiu bem mesmo, como não poderia, né?

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  • 6. Filipe  |  7 outubro, 2008 às 10:02 pm

    Me lembrei agora que eu vi esse filme dia desses. É o terceiro que eu vejo do Haneke e, sinceramente, preferi os outros dois (Cachè em primeiro e O Sétimo Continente em segundo). Acho o Haneke experimental demais e não acho que eu esteja pronto para assistir um filme que joga a história no lixo em prol da linguagem ou de uma simples mensagem. Vai ver o Haneke seja um incompreendido e vá queimar minha língua daqui há um tempo, mas não acho o estilo desse filme dos melhores (os outros dois filmes que eu citei tem uma linguagem bem experimental, mas têm roteiro). Bem, ainda acho que outros diretores exploraram melhor o tema da violência do que o Haneke.

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  • 7. Marcos  |  23 fevereiro, 2010 às 4:39 pm

    Olá!

    Sou leitor do fora de foco e sou cinéfilo de carteirinha. Eu estou mandando esse email porque estou trabalhando numa empresa que desenvolveu um portal sobre cinema – o Cinema Total (www.cinematotal.com). Um dos atrativos do site é que você cria uma página dentro do site, podendo escrever textos de blog e críticas de filmes. Então, gostaria de sugerir que você também passasse a publicar seus textos no Cinema Total – assim você também atinge o público que acessa o Cinema Total e não conhece o fora de foco.

    Se você gostar do site, também peço que coloque um link para ele no fora de foco, na seção “Blogroll”.

    Se você quiser, me mande um email quando criar sua conta que eu verifico se está tudo ok.

    Um abraço,

    Marcos

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  • 8. Karol Duarte  |  28 novembro, 2010 às 1:36 pm

    eu assisti esse filme pq de algum modo me lembrava “Laranja Mecânica”, é legal, mas na parte em que ele “volta a fita” pra fazer do jeito dele, eu achei uma palhaçada.. enfim, fora isso eu gostei muito do filme.

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