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Violência Gratuita (Rafael)

Violência Gratuita (Funny Games), 2007, Áustria/Estados Unidos, Michael Haneke.

Entre o verde das árvores de um lado e o azul enegrecido das águas do lago do outro, uma lancha desliza pelas estradas da rodovia levada por um carro que, calmamente, percorre a pista. Dentro do automóvel, o casal Ann e George sorriem em companhia do filho Georgie, ao som de uma bela sinfonia.  De repente, a voz doce e os violinos da música dão lugar a gritos histéricos e doloridos, um baixo furioso e uma bateria de hardcore.  Os sorrisos e as feições sossegadas da família dentro do carro, no entanto, permanecem iguais: estão indo passar as férias na casa de campo.  As férias mais “divertidas” de suas vidas.

A versão de 2007 de Violência Gratuita é um remake da versão original do filme, produzida 10 anos antes, em 1997. As cenas são as mesmas, o diretor é o mesmo, as proporções dos cenários também. O que muda na nova versão é o elenco de atores e algumas assinaturas na equipe técnica. No filme de 97, por exemplo, quem interpretou George foi o excelente ator Ulrich Muhe, de A Vida Dos Outros.  O diretor austríaco Michael Haneke (Cachè, A Professora de Piano) dessa vez dirige Naomi Watts (Ann), Tim Roth (George), Michael Pitt (Paul), Brady Corbet (Peter) e outros.  A nova versão de Violência Gratuita possibilitou uma melhor distribuição e produção do filme, que, aliado também ao crescimento do cinema do Velho Mundo, aumentou a visibilidade da película no circuito internacional.

Paul e Peter – interpretados por Michael Pitt e Brady Corbet, respectivamente – são primos. A uma primeira análise, temos a visão de dois simpáticos, bem cuidados e belos garotos, tanto um como o outro trajando roupas plenamente brancas e comedidas. De tão educados que são, chegam a causar certa estranheza e perturbação – e, logo no início do filme, veremos que farão por merecer tais sensações. Os dois estão hospedados na casa vizinha e resolvem então fazer uma pequena visita aos recém chegados Ann, George e Georgie, usando como pretexto para isso a necessidade de alguns ovos emprestados. E a partir daí, sem que percebam, a família passa a participar dos divertidos, cruéis e sádicos jogos da dupla.

E é também a partir daí que o diretor austríaco Michael Haneke, mais uma vez, pega com agressividade nos cabelos de nós, espectadores, e nos obriga a ficar em frente ao espelho. E o reflexo vislumbrado não será muito diferente do dos dois jovens perturbados: somos sádicos, sedentos pelo sangue que jorra das telas dos filmes, jornais e quadrinhos. Voyeuristas da violência produzida pela mídia. Em uma das cenas, o pai George pergunta: “Por que não nos mata logo?”. Paul, com um sorriso no canto da boca, responde: “Você não deve esquecer a importância do entretenimento”. Violência Gratuita, portanto, não é propriamente uma crítica às mídias que têm seu conteúdo manchado de sangue, mas à humanidade, que se deleita com tudo isso.  Em outro grande momento do filme, Paul vira para a câmera e diz: “O que você acha? Acha que eles têm chance de ganhar? Está do lado deles, não é?”. Os dois jovens e o espectador, portanto, longe de serem diferentes, são cúmplices de tudo que está acontecendo.

A fotografia sóbria de Violência Gratuita condiz com a aparência dos cenários: pacato e calmo. A trilha sonora é composta por sinfonias e a música que inicia e encerra, do grupo norte-americano Naked City, um dos projetos do saxofonista John Zorn. Outro fator relevante em Violência Gratuita é a interpretação dos atores. No entanto, Naomi Watts (Cidade dos Sonhos) fazendo o papel de Ann e Michael Pitt (Os Sonhadores) interpretando Paul se destacam entre o elenco. As feições de Ann, que misturam dor, medo e pavor, provoca as mesmas sensações em quem a vê. Já Michael Pitt soube bem incorporar um dos personagens mais perturbados do cinema – talvez justamente pelo fato de Paul ser tão parecido com as pessoas que vivem ao nosso redor.

As digitais de Michael Haneke estão por todo o filme: câmeras fixas que permanecem assim durante minutos, mesmo que nenhuma ação esteja ocorrendo, a violência emocional e não física – ou seja, é o que foi imaginado pelo espectador que choca, e não o filme em si -, a manipulação. Haneke, a todo momento, tenta perturbar e cutucar quem está do outro lado da tela. Mais uma vez consegue, e mais uma vez, com maestria.

Shall we begin?

3 setembro, 2008 at 8:10 pm 8 comentários

A Professora de Piano (Rafael)

Pôster

A Professora de Piano (La Pianiste), 2001, França/Áustria, Michael Haneke.

Antes de tudo, imagine uma professora de piano.

Qual imagem sua imaginação produz e a quais palavras seu cérebro remete? Muito provavelmente, a visão gerada será a de alguém elegante, de meia-idade, cuidadosamente bem vestida, transbordando sobriedade e educação, envolta em uma atmosfera de bons costumes e classicismo. Mas se o que você imaginou foi uma mulher extremamente perfeccionista e retraída, asfixiada por seus desejos reprimidos e pela mãe controladora, e que sente prazer ao cortar seu próprio órgão genital com uma navalha, então: 1) você já assistiu A Professora de Piano; 2) a professora com a qual você tomava aulas há alguns atrás é, digamos, um tanto quanto diferente do habitual.

A descrição acima feita é um resumo breve da personagem Erika, interpretada magnificamente por Isabelle Huppert, protagonista do sexto filme do diretor austríaco Michael Haneke. A Professora de Piano foi lançado no ano de 2001 com uma produção franco-austríaca (o filme é falado em francês). O roteiro do longa tem como base o livro homônimo da escritora Elfriede Jelinek, a qual em 2004 foi premiada com o Prêmio Nobel de Literatura. Em diversas vezes, diretor e respectivo elenco do filme subiram em palcos europeus para receber prêmios importantes de cinema: BAFTA, César, Festival de Cannes, entre outros.

Música clássica, voyeurismo, ciúmes, castração materna, repressão sexual, parafilias etc. Está tudo lá. A Professora de Piano é um procedimento cirúrgico que tem como objetivo dissecar a vida da personagem Erika Kohut, uma das professoras de piano do Conservatório de Viena. Durante a cirurgia, executada friamente pelas mãos do Haneke, visceras e pensamentos reprimidos no sub-consciente ficam bem visíveis aos nossos olhos. Além de Erika, há mais dois personagens importantes: Walter Klemmer (Benoît Magimel), um talentoso e simpático estudante que parece ser seduzido pela severidade do olhar de Erika, e a mãe da professora (Annie Girardot), senhora que parece substituir a ausência do marido por possessividade para com sua filha, tratando-a como uma garota de 12 anos e mantendo com ela uma relação de amor e ódio levada ao extremo de ambos os lados.

Para o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, “Sexo não é para gente escrupulosa. Sexo é um intercâmbio de líquidos, de fluidos, de saliva, hálito e cheiros fortes, urina, sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias. Ou não é”. Erika Kohut leva tudo issso ás últimas consequências. Incesto, mutilar a própria vagina, urinar observando casais transando, ser espancada e se submeter a situações humilhantes é o que causa prazer à professora de piano. Erika, assim como todos nós, somos produtos de uma sociedade que idolatra e ao mesmo tempo condena o sexo. É como o Deus cristão, segundo o Diabo interpretado por Al Pacino: “olhe mas não toque; toque mas não prove; prove mas não engula”. Haneke, durante o filme, não faz qualquer tipo de juízo moral em relação ao comportamento de Erika, muito menos provoca o espectador a fazê-lo. Os questionamentos e as feridas cutucadas, ao menos em mim, foram outras: de quem é a culpa pelo desvio sexual de Erika? Se há um culpado, seria Erika vítima de algo? Não seria o sexo através de suas formas mais tradicionais também um “desvio”, já que biologicamente a relação sexual tem como função primordial a reprodução humana? Mas sentir prazer e dor não deveriam ser sentimentos conflitantes para uma pessoa mentalmente saudável? Ad infinitum…

A trilha sonora, acompanhada por uma fotografia sutil e seca, é composta por compositores eruditos, citados diversas vezes durante o longa, destacando-se Schumann, Bach e Schubert. Isabelle Huppert, na pele da personagem-título, tem uma atuação impressionante, sem dúvida nenhuma uma das melhores interpretações femininas que o cinema já presenciou. A personalidade retraída de Erika exigiu ainda mais da atriz, pois ela tinha que se comunicar muitas vezes usando apenas suas expressões faciais. Outro fator que deve ter dificultado bastante o trabalho de todo o elenco são as longas tomadas e com poucos cortes de Michael Haneke, que obriga o ator/atriz a manter-se concentrado por mais tempo.

O diretor austríaco mais uma vez merece palmas. Sua formação em Psicologia explica muita coisa sobre sua maneira de dirigir. O cinema de Haneke é provocativo, contundente, violento. No entanto, a violência dos seus filmes não se encontra no filme em si, mas na indução da imaginação do espectador. Aqueles que não assistiram aos outros filmes do diretor (Caché, Código Desconhecido, Violência Gratuita etc.) talvez estranhem seu modo seco e contundente de dirigir e o final em aberto. Mas, tratando-se de Haneke, “estranhar” pode ser uma experiência fantástica.

“Professora, relaxe, permita-se ter sentimentos ao menos uma vez”.

9 abril, 2008 at 12:39 am 6 comentários


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